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Sábado, 04 de maio de 2024

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Senadores querem punição a autores de violência contra índios

A Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) vai requerer ao Ministério da Justiça e ao Ministério Público medidas legais para que sejam punidos os responsáveis por violências contra povos indígenas durante a década de 60, cometidas por agentes do estado e privados. Essa foi uma das conclusões da audiência pública que debateu nesta quarta-feira (22) o Relatório Figueiredo, documento que registra as atrocidades e matanças coletivas de índios.

– Foi um dos capítulos mais trágicos e cruentos da nossa história, com episódios que fizeram o Estado brasileiro se assemelhar à temível máquina de extermínio nazista – comentou o senador Randolfe Rodrigues (PSOL-AP).

Serão também cobradas providências para reparar e indenizar as vítimas, além de medidas destinadas a assegurar a recuperação das terras originais esbulhadas dos grupos indígenas durante o período.

A realização atendeu a requerimento do próprio Randolfe e da senadora Ana Rita (PT-ES), que preside a comissão. Os registros taquigráficos da audiência serão ainda encaminhados para a Comissão Nacional da Verdade e ao Ministério da Justiça, como contribuição para o esclarecimento dos fatos. – Os responsáveis não podem permanecer incólumes, protegidos sob o manto da impunidade – comentou Ana Rita.

Relatório

O Relatório Figueiredo, preparado em 1967, foi dado como desaparecido por mais de 40 anos. Ficou conhecido por esse nome por conta do seu autor, o procurador Jáder de Figueiredo Correia, que investigou o assunto a pedido do então ministro do Interior, o general Albuquerque de Lima. Entre as atrocidades descritas estão diversos tipos de tortura, como a trituração de tornozelos de índios, caçadas humanas com metralhadoras, doações de açúcar com veneno e até matança de tribos inteiras.

Marcelo Zelic, vice-presidente do grupo Tortura Nunca Mais-SP, foi um dos pesquisadores que descobriram o relatório há cerca de um mês no Museu do Índio, no Rio de Janeiro. Segundo ele, até então se acreditava que o relatório havia sido destruído em incêndio no Ministério da Agricultura, ao qual era vinculado o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), sucedido pela Fundação Nacional do Índio (Funai), do Ministério da Justiça.

Para Zelic, alguém quis preservar o documento para que, em algum momento, fosse encontrado. Diante da repercussão negativa que sua divulgação inicial causou, inclusive no plano internacional, ele disse que o governo comandado pelo general Emílio Garrastazu Médici operou para tirar o assunto de cena.

– Todo o movimento de abafa, de silenciar sobre o assunto, foi feito no governo Médici. O principal órgão de Direitos Humanos foi convocado a se reunir para dizer que jamais houve genocídio no país – afirmou.

Investigações

O jornalista Felipe Canedo, dos Diários Associados, falou sobre a elaboração da série de reportagens que escreveu sobre o relatório. Publicadas pelos jornais Estado de Minas e Correio Braziliense, a primeira delas saiu no dia 19 de abril, o Dia do Índio. Ele lembrou que nos anos 60 foram instaladas três comissões parlamentares de inquérito para investigar desmandos e irregulares no Serviço de Proteção ao Índio. A seu ver, o governo militar decidiu promover a investigação como resposta às pressões.

Para autor do relatório, no entanto, o resultado do trabalho deixou frustrações. O jornalista disse que se encontrou com um filho de Jáder Figueiredo, tendo ouvido dele que o pai morreu “amargurado pelos poucos frutos” da investigação. Como acredita Canedo, pelo menos um resultado surgiu: a extinção do SPI, com o nascimento da Funai.

Canedo contou ainda que um dos volumes do relatório não foi encontrado. Pela sequência das informações, ele intui que as 500 páginas faltantes podem se referir a processo que deveria constar como anexo, com informações capazes de esclarecer conflitos que envolvem terras doadas por Dom Pedro II aos índios Kadiwéus, do Mato Grosso. A doação foi feita como pagamento pela participação dos índios na Guerra do Paraguai.

Demarcações

Um consenso geral é de que o documento deve ser examinado sob a perspectiva dos impactos que suas informações causam ao país na atualidade, quando os direitos dos índios ainda continuam desprotegidos. Para os participantes da audiência de hoje, inclusive deputados da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, o país lida com ampla movimentação contra a demarcação de terras indígenas.

Em resposta, a CDH decidiu reforçar a articulação política parlamentar para barrar o avanço de proposições em tramitação no Congresso que criam obstáculos à demarcação das terras. Foram citadas duas Propostas de Emenda à Constituição (PEC): a 215/2000, de autoria do deputado Almir Sá (PPB-RR), e 38/1999, do senador Mozarildo Cavalcanti (PTB-RR). Pelos textos, a competência para a aprovação das demarcações passaria ao Congresso, deixando de ser função do Executivo.

– O que o Congresso está querendo fazer é completamente inconstitucional. Cabe ao Poder Legislativo fazer as leis, mas a implementação é função do Executivo – criticou a senadora Ana Rita.

Para Cleber Buzzato, secretário-geral do Conselho Missionário Indígena (Cimi), as informações do relatório reforçam a convicção de que existe um modo de agir do próprio Estado brasileiro contra os índios. Disse que a violência e o abandono caracterizam um projeto de nação que continua a perseguir desenvolvimento e progresso acima de qualquer valor.

– O pano de fundo é que os povos indígenas, considerados inferiores, poderiam ser tratados como animais. Depois de torturas, humilhação e trabalhos forçados, terminavam com suas terras roubadas.

O senador João Capiberibe (PSB-AP) apoiou a visão de que os índios são vítimas de uma política de Estado. Ponderou que o país não conseguirá ser uma sociedade democrática sem a convivência entre os diferentes e que, para isso, a sociedade precisa se informar e evoluir. – Não conseguiremos construir um país sem saber quem somos – disse.

Também participou da audiência o senador Wellington Dias (PT-PI), que defendeu um PAC, à semelhança do Programa de Aceleração do Crescimento, direcionado para as necessidades dos povos indígenas, com a desburocratização dos recursos programados.

Ava-canoeiros

Érica Yamada, que atua na área das demarcações da Funai e representou a fundação na audiência, confirmou que o documento contém informações importantes sobre áreas originais indígenas que ficaram “ofuscadas” pelos esforços para a delimitação de áreas na Amazônia. Disse que essas áreas se espalham pelas regiões Centro-Oeste, Sul, Sudeste e Nordeste.

– Documentos que comprovam esbulho podem fazer muita diferença, já que são raros e muito demandados pelos juízes – afirmou, em relação aos processos de demarcação.

O depoimento da antropóloga Patrícia Rodrigues foi um pedido de socorro em favor de um grupo de Ava-canoeiros que estaria sendo atingido por graves violações desde o início dos anos 60. Encurralados em sua terra original e resistentes à assimilação, eles se refugiaram em parte de uma área que veio a se adquirida pela Fundação Bradesco. Só restavam 11 índios quando o grupo foi contatado pela Funai, por meio de ação descrita como violenta.

Depois, o grupo acabou encaminhado para uma reserva de uma tribo tradicionalmente rival, na Ilha do Bananal, onde até hoje vivem em péssimas condições – desintegrados e impedidos de trabalhar. Houve procriação e hoje eles formam um grupo ao redor de 40 índios. O que querem é voltar para parte da área da Fundação Bradesco, que vem recorrendo contra a medida na Justiça.
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