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Palanque jurídico
Autor: Eduardo Mahon
26 Mai 2014 - 09:05
Recentemente, li um artigo sobre a jurisdicionalização da vida parlamentar. A constante intervenção judiciária na arena política pode, de acordo com o ensaio, causar severas instabilidades e frustrações. De fato, são linguagens diversas. O político enxerga um fato sob a ótica do impacto social, filtrando e traduzindo os anseios dos mais variados segmentos da população de forma utilitarista; já o jurista percebe o fato à luz da legislação, buscando problematizar ou solucionar questões, ainda que a resposta da equação nem sempre coincidam com a vontade da maioria. O tempo do processo não é o tempo da política: isso é evidente. O que a política tem de flexível e de dialógico, o processo tem cauteloso e garantidor. Essa marcada diferença pode frustrar a sociedade que projeta a solução de conflitos políticos com a mesma imediatividade das mídias contemporâneas.
Podemos caminhar numa linha diametralmente oposta à sugestão de jurisdicionalização da vida parlamentar. O que ocorre atualmente, do meu ponto de vista, é justamente o contrário: a politização da vida jurídica. O que seria mais nocivo? A vida política demanda outras personalidades com novas bagagens e, nesse contexto, juízes e promotores miram a filiação partidária para a futura candidatura. Enquanto ainda estão no cargo, flertando abertamente com partidos, começam a flexibilizar o entendimento essencialmente jurídico para dialogar com a imprensa por meio de ações e decisões – um grave equívoco para não dizer má-fé. Promotor e juiz não podem se permitir o uso de lentes político-partidárias para avaliar o impacto de uma decisão.
Como apoiadores, os colegas que ficam na função – juízes e promotores – torcem pela vitória do bom e do justo. Nada de mal, até oferecerem contribuições substanciais às campanhas: não por meio de dinheiro, mas demolindo a imagem deste ou daquele desafeto, por meio de inquéritos, denúncias e sentenças. Prender, processar, condenar um adversário para que a mídia encarregue-se da cobertura completa, atingindo a população com notícias verídicas sobre fatos nem sempre verdadeiros. Aí está completo o ciclo de politização da vida jurídica, muito mais invasivo do que o contrário. No afã de justiça – ou do justiçamento? – o povo não percebe as digitais da política em uma denúncia ou em uma sentença.
Cabe ao Poder Judiciário – independente e harmônico – a tutela da ordem constitucional e infraconstitucional, limitando abusos, corrigindo procedimentos administrativos errôneos, solucionando pretensões conflitantes de maneira geral. Numa democracia, a última palavra acerca de uma controvérsia de interesses é, quando acionado, do juiz de direito. É por isso que há todas as garantias constitucionais que o cargo proporciona. Todavia, não é da missão institucional da magistratura, nem tampouco das promotorias de justiça a guarda da ordem política nacional, inclinando a vontade popular com ações e/ou decisões. Esse expediente é, na verdade, nada mais do que o uso da máquina estatal para pressão, perseguição ou retaliação. O que estamos assistindo na atualidade é a instalação de palanques jurídicos, ovacionados por muitos desinformados.
Não pode o promotor ou o juiz “escolher” alvo para o ataque. A seletividade é o que há de pior para a democracia republicana porque submete a instituição independente aos caprichos pessoais de um grupelho politicamente organizado. A montagem de projetos pessoais no seio do mundo jurídico, ou seja, permear uma ação ou sentença de conteúdo político, além de inconstitucional, é altamente covarde. Um dos caminhos é suprimir o direito de defesa, monitorando os passos de advogados, tomando conhecimento de estratégias processuais antecipadamente por meio de mecanismos oficiais de controle. Nada resta de equilibrado num processo onde uma das partes sabe exatamente o que a outra alegará.
O mundo mudou. A informação mudou. A sociedade está mais veloz e, por isso, requer respostas mais e mais imediatas. Essa demanda por urgência é responsável pela execração pública por meio de uma ação policial, ministerial ou judicial, antes de qualquer sentença condenatória. Há o perigo de instituirmos uma “justiça plebiscitária”, umbilicalmente ligada às enquetes de opinião popular sobre um determinado caso ou pessoa. Rompe-se com a garantia constitucional de imparcialidade, ainda que não haja declaradas amizades íntimas ou inimizades capitais. Teremos, então, juízes e promotores engajados não em fazer justiça, mas fazer política, um grave equívoco como já alertamos.
Portanto, a solução é não haver nem a jurisdicionalização da vida política, nem muito menos a politização da vida jurídica, esta última hipótese bem mais perigosa: no primeiro caso, a tutela legalista engessa a dinâmica política; no entanto, o surgimento de um juiz-candidato ou de um promotor-candidato com os respectivos apoiadores atuando institucionalmente para dar base de voto com ações e sentenças é, além de flagrantemente ilegal, um instrumento de dominação covarde da vida republicana. Isso sim é expropriar o político da política e a política da liberdade de escolha.
Eduardo Mahon é advogado.
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