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Domingo, 28 de abril de 2024

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Sintomas da violência estrutural e institucional

Leandro Gornicki Nunes/Arquivo Pessoal

Partindo dos dados do InfoPen (Sistema Integrado de Informações Penitenciárias), atualizados até junho de 2012, este texto pretende fazer uma crítica à violência estrutural e institucional existente no Brasil . A população brasileira é de 190.732.694 pessoas, sendo que 549.577 estão presas no sistema penitenciário ou em estabelecimentos outros (média de 288,14 / 100.000 hab.). São sintomas da violência:

1. Violação da Lei de Execução Penal (LEP): em nosso país, há 41.220 presos em delegacias de polícia, inclusive, cumprindo pena privativa de liberdade, configurando uma flagrante violação da LEP e constituindo um universo obscuro para a presente análise, pois o InfoPen não traz indicadores em relação a essas pessoas. Ainda, tocante ao déficit estrutural do sistema penitenciário, somando-se a estrutura estadual e a federal, há 309.074 vagas no país, demonstrando um excedente de 240.503 presos. Certamente, muitos estabelecimentos estão superlotados e, em consequência, inúmeros direitos desses seres humanos são violados (LEP, arts. 40-43).

2. Violação à presunção de inocência: a Constituição é desprezada em muitos casos onde há o aprisionamento de pessoas sem que tenha ocorrido o trânsito em julgado da sentença condenatória. São 191.024 presos provisórios no sistema penitenciário, algo em torno de 37,5% dos presos do sistema carcerário (não sendo possível contabilizar os presos em delegacias de polícia). Somente 317.333 presos estão cumprindo pena. É o “autoritarismo cool” de que fala Zaffaroni, onde o poder punitivo se funda na presunção de periculosidade .

3. Seletividade e vulnerabilidade: os indicadores vinculados ao perfil do preso explicitam a seletividade do Sistema de Justiça Criminal, cuja atuação se concentra nos setores mais vulneráveis da sociedade, onde, não raro, as condutas injustas decorrem do contexto de marginalidade e pobreza extremas. Neste momento é importante destacar:
3.1. Grau de instrução: presos analfabetos (28.006) e alfabetizados (65.041) totalizam 93.047; com ensino fundamental incompleto (228.627) ou completo (57.935) totalizam 286.562; com ensino médio incompleto (56.257) ou completo (37.820) totalizam 86.014; com ensino superior incompleto (4.229) ou completo (2.126) totalizam 6.355; com pós-graduação há 90 presos.

É possível perceber que, em termos proporcionais, o grau de instrução da população brasileira, com idade superior a 18 anos, não é compatível com o grau de instrução da população carcerária, donde se conclui que o Sistema de Justiça Criminal atua com mais vigor sobre as pessoas com menor grau de instrução, responsáveis pela “obra tosca da criminalidade” , cuja maior visibilidade favorece a ação das polícias e do Judiciário. Embora a criminalidade esteja em todas as classes sociais e graus de instrução, o Sistema de Justiça Criminal criminaliza as condutas menos complexas, ou seja, a “criminalidade de rua”, notadamente os crimes patrimoniais e a narcotraficância de varejo.

3.2. Tempo total das penas: os dados mostram que cerca de 10,5% da população carcerária (excluídos os presos em delegacias) possui condenação a pena privativa de liberdade acima de 20 anos (53.730 presos). Logo, é possível deduzir que os demais presos (em número muito maior) sairão livres em um curto espaço de tempo , ainda mais se considerados os benefícios da execução penal (livramento condicional, regime aberto e indulto). Pode-se concluir: a) a política criminal precisa mudar radicalmente ; b) esse grande contingente de egressos do sistema prisional deve ser inserido em políticas sociais garantidoras de cidadania, impedindo a evolução de “carreiras desviantes” .

3.3. Criminalização da pobreza e da juventude: pelo tipo legal é possível ter uma noção da condição socioeconômica do agente delituoso. Do total dos presos no sistema penitenciário (508.357), praticaram crimes patrimoniais (256.352) e narcotráfico (133.946) um total de 390.298, ou seja, 76,77% dessa população: pessoas que estão nessa situação em virtude da crise estrutural do capital , produtora de marginalidade e pobreza extremas, forçando milhares delas a violar a lei para ter um mínimo de dignidade na “era do consumo”. É esse universo de vulneráveis que o sistema seleciona para exercer o seu poder (violência institucional), corroborando a injustiça do capitalismo neoliberal (violência estrutural) .

Outra questão alarmante em nosso país é a criminalização de uma juventude constitutiva do exército de reserva da força de trabalho que, por não ter instrução adequada, principalmente após a revolução tecnológica ocorrida recentemente, são inúteis e exigem controle máximo. Há no sistema penitenciário 260.154 presos com idade entre 18 e 29 anos, representando 51,17% desse universo, que, somados aos presos cuja idade varia de 30 a 45 anos (173.988), totalizam 434.142 presos (85,4% do total), evidenciando a forma seletiva de aprisionamento dos mais jovens em nosso país.

Por outro lado, a seletividade do sistema fica escancarada quando são analisadas as informações a respeito dos crimes contra a Administração Pública. estão presos por: a) corrupção passiva: 77; b) concussão: 51; c) peculato: 1.175; d) corrupção ativa: 5620. Destarte, chega a ser cômica a situação quando se vêem tantos escândalos na mídia envolvendo a Administração Pública em comparação com a atuação tênue do sistema de justiça criminal na chamada “luta contra a corrupção”.

3.4. Racismo: o indicador de cor de pele/etnia é o mais complexo, pois, no Brasil, houve histórica miscigenação . O interessante é que os dados do InfoPen derrubam a ideia lombrosiana de que os negros teriam propensão inata à criminalidade: apenas 81.602 negros estão presos, enquanto que a população branca (172.369) e parda (210.171) é quase cinco vezes maior (382.540). Seguindo a lógica positivista, talvez, seja essa informação o maior legado do InfoPen: comprovar que os negros, apesar da histórica subcidadania a que foram submetidos , são muito menos delinquentes que os brancos. Só que isso, infelizmente, não é prova do fim do racismo no Brasil.

3.5. Encarceramento feminino: em face da “luta contra as drogas”, as mulheres passaram a ser vítimas da seletividade do sistema penal. Do total da população carcerária, apenas 31.552 são mulheres (não computadas aquelas que estão presas em delegacias), em cujo perfil merece destaque o fato de 17.452 serem analfabetas (1.382), alfabetizadas (2.486) ou possuírem ensino fundamental (in)completo (13.584), e, 23.875 terem praticado crimes relacionados com o patrimônio (6.697) ou narcotráfico (17.178), totalizando 75,66% das presas. Trata-se da criminalidade vinculada ao contexto de marginalidade e pobreza. Ademais, os estabelecimentos prisionais destinados a elas estão em piores condições do que os destinados ao homens. E, para piorar a perspectiva sociológica, a maioria possui filhos que ficam, em muitos casos, abandonados, tornando mais deletéria a ação criminógena da pena privativa de liberdade.

3.6. Reincidência: não há informação a respeito da reincidência. Ao que tudo indica, o Estado não pode passar essa informação, porque isso seria o “atestado de óbito” da ideia de prevenção especial positiva (ressocialização).
4. Tratamento prisional: os presos brasileiros são pessoas conformadas com a injustiça social. Apesar dos presos – salvo raríssimas exceções – viverem em condições desumanas, poucos se envolveram em fugas (572) ou suicídios (8). Logo, trata-se de pessoas servis, dóceis e subjugadas, ao contrário do que é propalado pelo discurso midiático escatológico.

Concluindo, a sociedade brasileira, apesar de heterogênea (opressora, desigual, injusta e dividida em classes), possui uma população carcerária altamente homogênea.

Esse perfil dos presos é indício de que a maior parte dos sujeitos selecionados são pessoas que vivem no contexto de marginalidade e pobreza extremas, muitas vezes, agravadas por prévias passagens no sistema prisional. Apesar da pretensão de diminuição da população carcerária inserida na Lei n. 12.403/11, que alterou o Código de Processo Penal em relação à prisão processual, a “morte era anunciada”: a população carcerária não diminui. Um dos motivos para esse problema é a falta de uma Defensoria Pública devidamente instrumentalizada nos Estados e uma jurisprudência desgarrada da visão reacionária do Direito Penal. Sem esses dois elementos dificilmente haverá diminuição da população carcerária e da violência estrutural e institucional.

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