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Domingo, 28 de abril de 2024

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Novas tendências do constitucionalismo e seu reflexo no processo de elaboração legislativa

Muito se ouve falar, hodiernamente, em neoconstitucionalismo, o qual não podeser alvo de um simples resumo ou de uma mera conceituação prima facie. É chamado, também, de constitucionalismo pós-positivista ou constitucionalismo neopositivo.

Para UADI LAMMÊGO BULOS [In Curso de Direito Constitucional. 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2011, p.80], ao fim e ao cabo, trata-se da nova fase constitucional vivenciada, isto é, “o constitucionalismo contemporâneo com outro nome”.

Uns e outros apontam um ou outro marco de seu início, entretanto, o que se tem por certo, segundo UADI [op. cit., p. 80] “é que, a partir de 1990, alguns estudiosos americanos e europeus passaram a adotar esse epíteto do constitucionalismo contemporâneo em seus escritos”.

Seus traços gerais, agrupados impecavelmente por UADI [op. cit., p. 79], podem ser assim delimitados:

(i) fase marcada pela existência de documentos constitucionais amplos, analíticos, extensos, consagrando uma espécie de totalitarismo constitucional, consectário à ideia de constituição programática;

(ii) alargamento dos textos constitucionais, isentando o indivíduo das coações autoritárias em nome da democracia política, dos direitos econômicos, dos direitos dos trabalhadores;

(iii) disseminação da ideia de constituição dirigente que diverge daquela visão tradicional de constituição, que a concebe como lei processual, definidor de competências e reguladora de processos;

(iv) advento de novos arquétipos de compreensão constitucional, que vieram a enriquecer a Teoria Geral das Constituições;

(v) destaque dos direitos e garantias fundamentais como resposta às aquiescências, angústias e brados por uma sociedade melhor, justa e igualitária.

Parece ser a nova moda, a nova tendência do Direito Constitucional. Uma crença, uma fé inabalável na ideia de centralismo constitucional como verdadeiro “ovo de colombo”, como fórmula mágica de resolução de todos os problemas e angústias sociais.

Embalados na lição clássica de Konrad Hesse a respeito da “força normativa da Constituição”, os cultores do neoconstitucionalismo depositam na Constituição a sua confiança na resolução de todo e qualquer problema social, econômico, político, religioso, cultural e jurídico do Estado.

Daí o porquê da existência de autores que enxergam em nações como Portugal e Brasil, pois, a existência de um totalitarismo constitucional, marcado por textos de nítido conteúdo programático e dirigente, extensos e pormenorizados, configurando-se, a exemplo do que advoga RICCARDO GUASTINI [In La “constitucionalización” del ordenamento jurídico: el caso italiano. Estudios de teoría constitucional. México/DF: Fontamara, 2003, p. 153 apud BULOS, UadiLammêgo. op. cit., p. 81], em verdadeiras constituições invasoras, em clara interferência na ação dos atores políticos.

Nesse caminhar, os princípios constitucionais funcionam como verdadeiros “cheques-em-branco”, “varinhas de condão” dos neoconstitucionalistas, aptos o suficiente para, em um “toque de mágica”, resolverem quaisquer celeumas e entraves.

A verdade é que a prática constitucional, nesses nossos quase 25 (vinte e cinco) anos de Constituição e nos mais de 30 (trinta) anos de Constituição Portuguesa, revelou a absoluta inabilidade da jurisdição constitucional, desse natimorto milagre constitucional, para a resolução dos problemas mais cruciais do âmbito social, político, cultural, religioso, jurídico etc.

O neoconstitucionalismo já se encontra, portanto, com seus dias contados. A modernidade --- ou melhor, a pós-modernidade --- é exigente. Mas não só. É também consciente, e sobretudo honesta. A palavra ideal nessa ocasião ésinceridade.

O que se quer dizer com isso?

Que chegou a hora de assumirmos a insinceridade normativa de nossa Constituição Federal, fazendo uso, aqui, do termo utilizado por LUÍS ROBERTO BARROSO em uma de suas tantas obras, pedindo perdão ao leitor por não rememora-la nesta oportunidade.

É BARROSO quem diz, ainda, que não cumprimos nossas promessas constitucionais. Resta saber, é certo, se por impossibilidade prática, por desinteresse dos representantes periodicamente eleitos ou por aplicação de um verdadeiro estelionato político-constitucional, por mais forte que o termo possa parecer.

Na verdade, nesse momento pouco importa diagnosticar precisamente o motivo da ineficácia de nossa Constituição, até mesmo porque isso demanda investigação aprofundada. O que é certo, deveras, é que o nosso paradigma precisa ser imediatamente alterado.

Inabilidade da Constituição para a resolução das promessas feitas (direitos sociais e políticas públicas, v.g.) e efeito impactante da globalização no âmbito do Direito Interno: são estes, em nosso pensar, os maiores motivos para que fosse dado ensejo à evolução das teorias constitucionais, vindo à baila, então, a teoria da interconstitucionalidade, por alguns chamada de transconstitucionalismo ou mesmo internacionalização do Direito Constitucional.

E digo mais: é um caminho sem volta!

Com efeito, para entendermos esse novo caminhar constitucional, mister se faz, primeiramente, destacar a crise do Estado moderno, o qual perdeu parcela de sua soberania em razão de ao menos 4 (quatro) motivos, tal como obtempera Gustavo Zagrebelsky [apud DE MORAIS, José Luis Bolzan. As crises do Estado e da Constituição e a transformação Espaço-Temporal dos Direitos Humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011] – verbis:

(i) pluralismo político-social interno, que se opõe à própria ideia de soberania e de sujeição;

(ii) formação de centros de poder alternativos e concorrentes com o Estado que operam no campo político, econômico, cultural e religioso, frequentemente em dimensões totalmente independentes do território estatal;

(iii) progressiva institucionalização de “contextos” que integram seus poderes em dimensões supraestatais, subtraindo-os à disponibilidade dos Estados particulares; e

(iv) atribuição de direitos aos indivíduos, os quais podem fazê-los valer perante jurisdições internacionais em face dos Estados a que pertencem.

Essa análise atualizada da soberania estatal é imprescindível, vez que a Constituição, como ressabido, é o documento normativo que lhe dá conformação jurídico-política, devendo se amoldar, desta feita, com a evolução da Teoria do Estado, profundamente alterada com o advento da globalização e da recorrente “pós-modernidade”.

A propósito das transformações das ordens jurídicas no contexto pós-moderno, confira-se a precisa lição de J. J. GOMES CANOTILHO [In “Brancosos” e Interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2ª ed., Coimbra: Almedina, 2008, p. 110] – verbis:

A “internacionalização” e a “europeização”, no caso português, e a internacionalização e a “mercosulização”, no contexto do Brasil, tornam evidente a transformação das ordens jurídicas nacionais em ordens jurídicas parciais, nas quais as constituições são relegadas para um plano mais modesto de “leis fundamentais regionais”. Mesmo que as constituições continuem a ser simbolicamente a magna carta da identidade nacional, a sua força normativa terá parcialmente de ceder perante novos fenótipos político-organizatórios, e adequar-se, no plano político e no plano normativo, aos esquemas regulativos das novas “associações abertas de estados nacionais abertos”.

O modelo sugerido, conforme registra CANOTILHO [op. cit., p. 142-143], seria o de um “Estado mais ‘elegante’ e mais conforme com o mercado”. Isto é:

O Estado Social deve sujeitar-se a uma terapia adequada. Há que substituir, em primeiro lugar, o big governmentdo estado de bem-estar por um estado “reduzido” e “elegante”. Para isso ser possível, os inúmeros serviços e administrações estatais, caros e ineficientes, devem ser substituídos por esquemas privados empresariais. Mas mais do que isso. Os próprios instrumentos de direção e organização económico-privados revelam operacionalidade suficiente para serem introduzidos na máquina estatal.

O chamado New-public-management será a via para a modernização do estado e da respectiva reforma da administração. Esta modernização do Estado implicará a “desconstrução” do sector público estatal. Num plano macro-económico, a viragem “economizadora” aponta para uma clara mudança na compreensão do Estado. Desde logo, a nível simbólico. O “Estado Social” é um “mito”, um “feitiço”, uma “bruxaria” que deixou de manipular artes mágicas capazes de o fazer sair da bancarrota e da ineficiência. Estado “desmistificado” e “desfeiticizado” precisa-se.

Isso tudo --- sem que tenhamos chego à exaustão da tratativa do tema ou ao menos ao mínimo necessário para tanto --- evidencia a existência de um profundo reflexo dessas alterações na Teoria do Estado e da Constituição na órbita do processo de elaboração legislativa a cargo dos Parlamentos e, também, dos próprios Chefes do Poder Executivo de todos os níveis da Federação.

É claro, afinal, a teoria piramidal kelseniana, conhecida também como Stufenbau, na qual Constituição é posicionada no ápice do sistema normativo, é, evidentemente, posta em xeque, e o efeito cascata disso afeta as demais normas infraconstitucionais.

E devemos fazer justiça, dentre tantos outros nomes de peso, a VALÉRIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI [InDireito Supraconstitucional: Do absolutismo ao Estado Constitucional e Humanista de Direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010], professor da nossa Federal de Direito matogrossense (UFMT), que, em obra conjunta com o renomado jurista LUIZ FLÁVIO GOMES, já vinha denunciando essa constante flexibilização --- para não dizer subordinação --- da ordem constitucional interna face ao Direito Internacional, ainda que com o enfoque exclusivo na questão do humanismo (Direito Internacional dos Direitos Humanos).

O momento é de perguntas, não de respostas. De mais dúvidas do que certezas. O que é certo, de fato, é que os paradigmas normativos tendem a alterar cada vez mais, com a prevalência de centros diversos --- e por isso mesmo dispersos --- de poder, sobretudo na mão das Comunidades supranacionais a nível regional (União Europeia, Mercosul, v.g.) e global (ONU e OMC, v.g.), compelindo aos legisladores o dever de obediência a essas normas superiores.

O cosmopolitanismokantiniano, que buscava a harmonia dos povos da humanidade pela cooperação e pela solidariedade, parece estar mais perto de se consolidar, com a redução de parcela da soberania de cada Estado Internacional em prol do todo. É claro que devemos estar sempre atentos àqueles que, a pretexto disso, buscam imperar em escala global, impondo suas crenças e valores de forma hegemônica aos países mais fracos (sim, estamos fazendo referencia direta aos Estados Unidas da América, tomando carona no pensamento de JOSÉ LUIS BOLZAN DE MORAIS na obra já citada – p. 33, nota de rodapé 9).

O que devemos ter mente, ao fim e ao cabo, é que a Constituição deixou de permanecer no ápice do sistema normativo, e o efeito disso é que as normas que lhe são prestam vassalagem devem acompanhar essa tendência, conformando-se não só com suas diretrizes (dela, a Constituição) como também com as normas comunitárias e internacionais, presente a globalização, situação aparentemente incontornável e irreversível.


Rodrigo Cyrineu é advogado eleitoralista e administrativa, e também Consultor Jurídico da Câmara Municipal de Cuiabá.

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