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Domingo, 28 de abril de 2024

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Por Cima É Bem Melhor

Só mesmo quem trafega pela cidade no cotidiano de trabalho, cumprindo horário em seus compromissos e/ou ainda levando e buscando a família vai me entender. Posso afirmar então que muita gente vai me entender, pois são poucos os que não têm essa rotina.

No dia-a-dia não podemos ir e voltar de helicóptero, como fez o ator sorriso da campanha “Tempo de Obras” patrocinada pelo governo do estado. Ali ele gasta todo seu lado Pollyanna invocando os munícipes a jogar com ele o jogo do contente. Tudo errado. Ele deveria ter ido de carro como nós - les misérables. Ainda assim seria possível manter o filme em um minuto pela facilidade da edição de imagens. Mas ele foi por cima.

Vendo as cenas, o lenitivo, a mim, não funcionou bem: posso comparar ao consolo oferecido por uma pessoa sentada num banquete a outra faminta olhando lá do lado de fora, pelo vidro. “Tenha paciência, a fome é assim mesmo, incomoda.” E continua a comer sossegado.

Por que tenho sempre essa impressão, de que estão mofando com a nossa cara diante de tudo que estamos passando nesta cidade em estado de calamidade, se acabando em buracos de todas as dimensões, desviados de nossos caminhos, gastando mais combustível e quebrando a suspensão do carro, saindo mais cedo ainda de casa se quisermos chegar a algum lugar? Sabe Deus o que é aquele trevo do Santa Izabel? Passei por lá e vi o Haiti pós-terremoto.

Evidentemente para muitos existem outros prejuízos além destes – destaquemos o comércio nos locais de obras, nos desvios estragados e entorno. Sequer benefícios fiscais serão concedidos aos afetados, como já foi declarado pela SEFAZ/MT. Que se virem. E aqueles que já não estão bons das pernas são os primeiros a cair, tendo qualquer chance de recuperação eliminada – caso de uma filial de grande rede de supermercados com orgulho de ser “genuinamente mato-grossense”. A curto e médio prazo a calamidade abre ensejo a um baque econômico na capital.

As desapropriações são outro capítulo, à parte. Pagamentos abaixo de valores de mercado estão entre as reclamações. E onde isso tudo vai parar? No judiciário, em dúzias de contendas. Entretanto, o ator global com cara de sulista está confiante, afinal ele não mora aqui. Só fez um passeio de helicóptero e foi embora. Ok, eu sei que não preciso falar demais. Você aí, lendo, sabe muito bem do que estou falando, é coadjuvante neste cenário.

Os mais desinformados, qualquer um com curta percepção do todo ou mesmo o mal intencionado pode dizer que “sou contra o progresso” ou “estou contra Cuiabá”. Tanto sou a favor que acompanho os fatos e não me esqueço deles. Em 2007 o Brasil já era sede da Copa 2014. Em maio de 2009 Cuiabá já era sede. Em 2010, houve eleições para o divino governo responsável pelos preparativos. Em 2011 foi criada a extinta AGECOPA no intuito de centralizar as providências e foi só trapalhada. Quem se esqueceu das 10 Land Rovers, do cronômetro milionário de contagem regressiva ou dos tapas e beijos em busca de um lugarzinho na agência? Nessa hora eu sinto o limiar tênue entre o riso e o choro, pois não sei se é caso de um ou de outro.

Chegou 2012 e concluímos que nossos representantes e seus delegados estavam ocupados demais até então e quando a água bateu no traseiro alguém teve a brilhante idéia: vamos interditar, furar e rasgar toda a cidade! Tudo junto e misturado numa só tacada. Enquanto isso, Assembleia e Câmara contemplam. TCE elabora relatórios. FIFA faz cara de parede. Nós, pagadores da conta, agonizamos.

É bom lembrar que apesar de 2014 ser ano de jogos mundiais de futebol, nem por isso deixamos de levar nossos filhos à escola, deixamos de bater ponto no serviço, deixamos de pagar luz, água, impostos e taxas, deixamos tampouco de abastecer o carro a R$ 3,00 o litro da gasolina para poder fazer tudo isso, entre outras dezenas de afazeres importantes, como votar no próximo governo que receberá a ressaca da festa. Obras inacabadas em todo o estado, estradas esquecidas, investimentos em saúde ou segurança abandonados, contratos milionários não cumpridos pelas empreiteiras. Dívidas e rombos financeiros já levantados desde agora em empréstimos junto a CEF e BNDES, ultrapassando 1,5 bilhão de reais.

Desnecessário a Copa do Mundo acontecer e Cuiabá sediar quatro jogos para que obras tão importantes e imprescindíveis fossem realizadas. Essas obras tinham que ser feitas de qualquer maneira, há muito tempo e poderiam vir aos poucos, com baixo ou médio impacto no cidadão.
Porém, teremos um 2015 de cinzas, com a casa toda para reorganizar após todo o entusiasmo vivido desde 2009, quando “vencemos” Campo Grande na disputa das cidades-sede.

Mais que torcer no futebol, torça para que outro ator venha novamente em 2015 e voe novamente por sobre nossa cidade mostrando que tudo deu certo, que estamos como ele trafegando normalmente em nossas ruas, trincheiras e viadutos.


Christiane Batista é advogada e acadêmica de Letras da UFMT
christianeadv@uol.com.br

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