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Especialista aponta caminhos possíveis para julgamento de indígena que enterrou bisneta viva

Da Redação - Paulo Victor Fanaia Teixeira

Na noite de terça-feira (05), um bebê indígena xinguana foi encontrado enterrado por policiais civis e militares de Canarana (a 879 km de Cuiabá). A recém-nascida estava viva e precisou ser internada. A mãe é menor, a avó nada fez e a bisavó, crendo que o bebê estava morto, segundo alega, o enterrou. As três foram para a delegacia. A bisavó segue presa e a população pede justiça.

Fica a questão: Qual justiça? Quais leis e penas? A despeito de julgamentos viscerais que a população habituou-se a propor nas redes, “estamos diante de um caso muito delicado”, avalia a advogada e professora Edilene Dias Virmineiro Balbino, ao Olhar Jurídico.

O debate é profundo. Ao mesmo tempo em que a Constituição Federal, em seu Artigo 5º prevê o direito à vida como princípio básico de nossa sociedade, também sustenta, no Artigo 215 (§ 1º), a proteção às manifestações das culturas indígenas, bem como (no Artigo 129 – V) defender judicialmente os direitos e interesses de suas populações. Qual deve prevalecer?

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Para Edilene Balbino, não se trata da problemática: “responsabilizar ou não?” o indígena em seus eventuais atos criminosos, mas sim, “como responsabilizar” sujeitos de culturas alheias à não índia, no âmbito do direito, em território nacional. Em outras palavras, o conflito não está em "abordar ou não", judicialmente, tais crimes, mas em "como abordá-los".

O conflito passa pelo chamado “pluralismo jurídico”, explica a professora. A corrente consiste no respeito à pluralidade dos grupos sociais, aplicando e levando em consideração sistemas jurídicos múltiplos. A filosofia questiona a capacidade do Estado, enquanto entidade não índia e “dominante”, de se impor como executor único e exclusivo do direito.

Exemplo de Fora

Neste quesito, “as Constituições dos outros países da América Latina estão mais evoluídos que do Brasil”, dispara a advogada, que se declara admiradora da Carta Magna do Estado Plurinacional da Bolívia.

Para Edilene, se por um lado é impossível conceber um Estado que pune indígenas da mesma forma que um não índio, por outro, seria inaceitável o Judiciário simplesmente fechar os olhos aos delitos cometidos por eles, colocando-os como inimputáveis. O caminho é o do meio, explica a professora, uma abordagem jurídica que cumpra seu papel, mas que leve em consideração fatores diversos, trazidos pela antropologia.

“É preciso entender que o indígena é uma pessoa com pensamento diferente, com cultura e personalidade diferente. Logo, eu, enquanto policial ou agente do Estado, preciso lidar com olhar que leve essa diferença em consideração”, afirma. "Precisamos olhar o ser humano antropologicamente, entender quem é ele e como visualiza o ato que cometeu, seja ele criminoso ou não. O que o indigena quis fazer com aquele ato?".



O Ato 

O bebê encontrado enterrado vivo na última terça-feira (05) é de uma etnia residente no Parque Nacional do Xingu. Uma das versões para o fato é a cultura milenar de bater na cabeça e enterrar filhos “sem pai”, que seria o caso do bebê.

Outra versão é que a criança teria caído de cabeça no chão quando a mãe deu à luz no banheiro da casa, razão pela qual ela acreditaria que a criança já estaria morta ao ser enterrada.
 
O bebê foi encaminhado ao Hospital Municipal de Canarana inicialmente e, devido ao seu estado de saúde, transferido na noite de quarta-feira para a Santa Casa de Cuiabá. Sua saúde estável, com leve insuficiência respiratória. 

As Leis

No aspecto jurídico, a abordagem ao indígena é amplamente debatida e não é de hoje. Por conta dele, desenhou-se, ainda no regime militar, a Lei 6001, de 1973 - o “Estatuto do Índio”.
 
Destaca-se do Estatuto o Artigo Art. 57, que prevê: “Será tolerada a aplicação, pelos grupos tribais, de acordo com as instituições próprias, de sanções penais ou disciplinares contra os seus membros, desde que não revistam caráter cruel ou infamante, proibida em qualquer caso a pena de morte”.
 
No âmbito internacional, é amplamente difundido o entendimento da Organização Internacional do Trabalho  sobre Povos Indígenas e Tribais, que leva em consideração, em seus Artigos 9º e 10º, os “métodos aos quais os povos interessados (indígenas) recorrem tradicionalmente para a repressão dos delitos cometidos pelos seus membros”; “As autoridades e os tribunais solicitados para se pronunciarem sobre questões penais deverão levar em conta os costumes dos povos mencionados a respeito do assunto” (9º).

No Artigo 10º, verifica-se: “1. Quando sanções penais sejam impostas pela legislação geral a membros dos povos mencionados, deverão ser levadas em conta as suas características econômicas, sociais e culturais. 2. Dever-se-á dar preferência a tipos de punição outros que o encarceramento”.

O Direito de Julgar

Estes dispositivos podem ser invocados em eventual ação penal contra indígenas, tanto como atenuante de pena quanto para absolvição, quando o sujeito é processado em um Tribunal não índio. Em outros casos, embora raros, verifica Edilene, o Poder Judiciário vai além e delega à própria comunidade indígena local o poder de julgar seu par, seguindo o entendimento de que "havendo julgamento e punição pela comunidade, não subsiste o direito de punir Estatal".

No Tribunal de Justiça de Roraima essa filosofia foi seguida à risca, há três anos. O juiz Aluizio Ferreira Vieira e o desembargador Mauro Campello deixaram de julgar o mérito da ação penal movida contra o indígena Denilson Trindade Douglas, que assassinou um membro de sua comunidade. O caso ocorreu em 2009 e os julgamentos, proferidos, respectivamente, em 2013 e 2015. O fundamento para ambos foi claro: o réu já havia sido submetido a julgamento e condenado por seus pares, seguindo rito específico daquela tribo.
 
No processo, que ficou conhecido como “Caso Denilson”, o Estado considerou a importância da "justiça tribal" e evitou que o réu fosse condenado duas vezes pelo mesmo crime. O exemplo foi levado para diversos debates jurídicos Brasil a fora. Exemplo prático do entendimento de um Estado pluriétnico, como o Brasil, avalia a professora.
 
Advogada e Professora, Edilene Dias Virmineiro Balbino.

Intervenção

O conflito entre o direito à vida e o respeito à cultura alheia não é de hoje e se estende a outros casos práticos envolvendo comunidades e tribos. O que fazer quando a Polícia encontra um bebê indígena enterrado? Ou, quando uma religião não permite transfusão de sangue, ainda que para casos urgentes, como o médico deve lidar? É obrigatória a intervenção? De que forma?

“Estamos falando do liame entre cultura e diretos humanos", avalia a advogada. "É necessário, novamente, um profundo exame antropológico. Para a realização da intervenção, é necessária a conscientização. Por exemplo, explicar ao indígena o que são direitos humanos, direto à vida, à personalidade. É difícil lidar com situações de intervenção. O direito em si é vazio para interpretar todas estas questões. Voltarmos à antropologia, à sociologia, à história destes povos, chegando ao máximo de nossa humanidade, de modo à realizarmos as intervenções com a devida conscientização”.

Da mesma forma, a professora evita radicalismos. Para ela, não se trata de abandonar um ser vivo em risco de morte, em prol do respeito à cultura alheia, nem de invadir comunidades e tribos, submetendo-os aos nossos costumes, em prol da vida. A linha é tênue.

“A polícia deve fazer sua parte, mas cabe a ela a visão humanitária para abordar a situação. Saber que está lidando com povos diferentes, com visões de mundo diferentes. Ele vai olhar o ato, ele vai ver que se trata de um crime, mas ele precisa ter, enquanto profissional do Estado, o mínimo de visão antropológica para lidar com este caso. Até mesmo para compreendermos que o conceito de crime para mim, é diferente do dele. Ora, mesmo que nós dois cometamos homicídio, qual a visão dele de homicídio? Será que é igual à minha, que fui criada nessa sociedade? O profissional do Estado precisa estudar, para compreender e verificar as variações inerentes às etnias”.

            
                                                          Bisavó foi presa na última terça-feira (05). Foto: PJC

Entenda o Caso

 
A Polícia Civil descobriu que a bisavó da criança foi quem cortou o cordão umbilical e a enterrou. Segundo a família, todos acreditaram que ela estava morta. Conduzidas à delegacia para esclarecimentos, a mãe da criança (adolescente de 15 anos) e a avó do bebê contaram que a jovem sentiu fortes dores (contrações) e foi ao banheiro sozinha, momento em que deu a luz a menina. Ao nascer, a criança teria batido a cabeça no vaso sanitário, ocasionando sangramento.
 
Depois, a bisavó da criança cortou o cordão umbilical do bebê e também foi a responsável por enterrar a recém-nascida, conforme as investigações. Kutz Amin, de 57 anos alegou que a criança não chorou e por isso acreditou que estivesse morta e segundo costume de sua comunidade enterrou o corpo no quintal, sem acionar os órgãos oficiais.
 
A Polícia Judiciária Civil de Canarana realizou autuação em flagrante pelo crime de homicídio tentado praticado pela bisavó da bebê. De acordo com o delegado Deuel Paixão de Santana, o fato só veio a tona (e a criança salva), porque a mãe do bebê apresentou hemorragia durante toda a tarde de terça-feira (05) e em razão da necessidade de atendimento médico a ocorrência foi divulgada.
 
A bisavó será encaminhada para audiência de custódia para deliberação do Judiciário. A recém-nascida segue internada em uma unidade hospitalar de Água Boa. Pelo fato do pai não assumir a criança e a mãe ter apenas 15 anos, há suspeitas de que tenham tentado matar a recém-nascida.
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