A possibilidade de concessão de anistia para crimes que atentam contra o Estado Democrático de Direito, como os ocorridos em 8 de janeiro de 2023 e os supostamente cometidos pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, tem gerado intenso debate no cenário jurídico e político brasileiro. Para lançar luz sobre o tema, o
Olhar Jurídico consultou o advogado Kennedy Bispo Silva Conceição, bacharel em direito pela Universidade Federal de Mato Grosso, mestrando em Direito do Estado, Constituição e Direitos Fundamentais e presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB-MT. Kennedy aponta para a inviabilidade constitucional de tal medida, alertando para os riscos de se fragilizar a própria estrutura democrática do país.
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Segundo o advogado, a Constituição Federal de 1988 não admite a concessão de anistia para crimes que visem à abolição do Estado Democrático de Direito. Segundo o especialista, uma leitura meramente textualista que alegue a ausência de vedação expressa seria "simplista e reducionista". O Direito deve ser interpretado sistemicamente, e a própria lógica do sistema jurídico impede tal possibilidade.
Kennedy enfatiza que qualquer lei de anistia aprovada pelo Congresso Nacional está sujeita ao controle de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O legislador só tem legitimidade para atuar dentro dos limites constitucionais. Caso uma lei de anistia afronte valores constitucionais, como a proteção do Estado Democrático de Direito – uma cláusula pétrea insuscetível de flexibilização –, ela poderá ser questionada no STF para assegurar a supremacia da Constituição.
Confira a entrevista com o advogado:
1 - A Constituição Federal permite a concessão de anistia em casos de crimes contra o Estado Democrático de Direito, como tentativa de golpe de Estado?
Kennedy Bispo Silva Conceição: A Constituição Federal não admite a concessão de anistia nos casos de crimes que visem à abolição do Estado Democrático de Direito. Alegar que não há previsão expressa de vedação seria adotar uma leitura simplista e reducionista, fundada em um “textualismo” incapaz de compreender que nenhum texto normativo esgota todas as hipóteses possíveis da vida. A norma constitucional não precisa dizer, palavra por palavra, que não se pode anistiar quem atenta contra a democracia: a própria lógica do sistema jurídico impede tal possibilidade. O exemplo é elementar: se a lei proíbe levar “cachorros no avião”, não significa que, pela ausência de menção expressa, os ursos estariam autorizados. Qualquer estudante, nos primeiros anos de curso, sabe que o Direito se interpreta sistemicamente e não por recortes literais. A Constituição de 1988 é explícita ao eleger, no art. 1º, a República Federativa do Brasil como um Estado Democrático de Direito, fundado, entre outros valores, no pluralismo político (inciso V). Um golpe de Estado representa, por essência, a negação desse fundamento, porque concentra poder, destrói o equilíbrio institucional e anula a soberania popular. É preciso lembrar que o próprio surgimento histórico do Estado de Direito decorreu da luta contra o poder absoluto dos monarcas, impondo limites à vontade individual para garantir liberdade e dignidade às pessoas. Qualquer tentativa de abolir a “separação dos Poderes”, o “sufrágio”, ou as “garantias constitucionais” deve ser vista como violação direta às cláusulas pétreas previstas no art. 60, §4º, II, III e IV da Constituição. A propósito disso, no inciso XLIV do art. 5º da Constituição, também é dito que “constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”. Como se verifica, a Constituição em todo o momento se salvaguarda de ameaças contra o Estado Democrático de Direito. A interpretação constitucional não pode ser feita através de recortes, mas de maneira íntegra e coerente. A proteção ao Estado Democrático de Direito é a espinha dorsal de toda a ordem constitucional e não pode ser flexibilizada por casuísmos políticos. É também imprescindível resgatar um contexto histórico. A Constituição de 1988 nasceu da redemocratização, após décadas de autoritarismo da Ditadura Militar. Seria um contrassenso absoluto supor que uma Carta forjada na luta contra a Ditadura tivesse deixado espaço, ainda que implícito, para a anistia de crimes voltados à destruição da democracia. A própria gênese da Constituição repele essa hipótese: não se anistia o atentado ao princípio que fundamenta a sua existência. Se o fato de um crime dessa natureza decorrer quase sempre de cenários políticos conturbados fosse motivo suficiente para a concessão de anistia, em busca de pacificação, consequentemente, nunca haveria reprimenda da lei penal criada pelo Congresso Nacional para tais crimes, inexistindo uma clara resposta do Estado Democrático de Direito contra as suas ofensas.
2 – Há diferença jurídica entre conceder anistia a réus já condenados e a investigados ou denunciados ainda sem sentença definitiva?
Kennedy Bispo Silva Conceição: Segundo Fernanda Dias Menezes de Almeida, a anistia consiste “no ato da autoridade competente que elimina todos os efeitos do delito, bloqueando totalmente a pretensão punitiva do Estado e fazendo desaparecer eventual condenação”. A concessão da anistia se instala no plano de extinção da punibilidade do ato já praticado, portanto, não parece adequado supor que ela somente possa ser concedida após a existência de um processo formal com sentença transitada em julgado. Então, teoricamente, seria possível anistiar atos antes da sentença penal condenatória. Contudo, importante sempre ter em vista que “anistia” pretende eliminar a punibilidade de um crime efetivamente cometido.
3 - Caso o Congresso Nacional aprove uma lei de anistia para os envolvidos nos atos de 8 de janeiro, essa lei poderia ser contestada no Supremo Tribunal Federal? Com base em que argumentos constitucionais?
Kennedy Bispo Silva Conceição: Sim, pois toda lei ou ato normativo está sujeito ao controle de constitucionalidade em face da Constituição Federal. O legislador só exerce legitimamente o poder de legislar porque a própria Constituição lhe confere essa atribuição. Fora dos limites constitucionais, o ato do legislador perde validade. A comparação é simples: uma procuração permite ao advogado agir em nome do seu cliente em alguns casos, mas se ele extrapola os limites do mandato, seus atos tornam-se inválidos. O mesmo raciocínio se aplica ao legislador que ultrapassa as balizas constitucionais. Essa não é uma ideia recente. Já nos escritos do abade Sieyès, na França revolucionária, a noção de que a Constituição está acima do legislador era central para garantir a legitimidade do poder político. No Brasil, esse princípio foi consagrado pela ordem constitucional de 1988 e pelo controle de constitucionalidade exercido pelo Supremo Tribunal Federal. Portanto, caso o Congresso Nacional aprove uma lei de anistia que afronte valores constitucionais – como a proteção do Estado Democrático de Direito, cláusula pétrea insuscetível de flexibilização –, essa lei poderá ser questionada no STF, para que se assegure a supremacia da Constituição. O questionamento poderá ser realizado pelos agentes legitimados na própria Constituição (art. 103). Quanto aos atos cometidos no dia 8 de janeiro, somente pode falar em anistia aquele que admite o cometimento de crime de atentado contra o Estado Democrático de Direito e, se for esse o caso, entre os muitos fundamentos possíveis para impugnar tal concessão, encontram-se aqueles que já nominei anteriormente.
4 - Existe precedente na história constitucional brasileira que possa servir de base — ou de alerta — para uma eventual anistia em casos de ataque à ordem democrática?
Kennedy Bispo Silva Conceição: Sim, e o principal precedente histórico brasileiro é a Lei da Anistia de 1979 (Lei Federal nº 6.683/79). Ela foi aprovada durante o regime militar, no contexto de “abertura política”, e concedeu perdão tanto a perseguidos políticos quanto a agentes do Estado que haviam cometido graves violações de direitos humanos, como tortura, desaparecimentos forçados e execuções arbitrárias. Esse precedente serve mais como alerta do que como base de legitimação. Isso porque a anistia foi usada de forma ampla e bilateral, beneficiando não apenas opositores políticos, mas também aqueles que haviam atentado contra a dignidade humana. Segundo, porque sua aplicação posterior foi objeto de severas críticas no plano internacional. Em 2010, no julgamento da ADPF 153, o STF manteve a validade da Lei de 1979, entendendo que ela se incorporara ao processo de transição democrática. A questão é que, nesse caso, ela teria sido validada justamente considerando as particularidades daquele período de transição entre um regime ditatorial antigo para um regime atual democrático. Isso, hoje em dia não existe, pois não há na atualidade uma transição de regimes. O regime democrático não foi derrotado. Sobre essa decisão do STF em 2010, referente a Lei da Anistia do regime militar (Lei n.º 6.683/1979), importante lembrar que, no mesmo ano, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Gomes Lund e Outros vs. Brasil (Guerrilha do Araguaia), condenou o país por entender que a anistia a crimes contra a humanidade era incompatível com a Convenção Americana de Direitos Humanos. Agora, essa discussão sobre a aplicação da Lei da Anistia de 1.979 para aqueles que, durante a Ditadura Militar, cometeram crimes de ocultação de cadáver. Esse é o assunto a ser julgado no ARE 1.501.674/PA, o que evidencia que essa questão da anistia ampla e irrestrita ainda não esta totalmente resolvida. Independente disso, paralelo então é muito claro. Se em 1979 a anistia serviu para apagar crimes graves praticados sob o argumento da “pacificação nacional”, hoje a concessão de anistia a crimes contra a ordem democrática poderia repetir o mesmo erro – transformando um instrumento que deveria servir à reconciliação em um mecanismo de impunidade, como já dito anteriormente. A diferença é que, na Constituição Federal de 1988, o Estado Democrático de Direito foi erigido a fundamento da República (art. 1º, caput), e as cláusulas pétreas (art. 60, § 4º, II a IV) impedem qualquer tentativa de aboli-lo. Portanto, a experiência da Lei da Anistia de 1979 deve funcionar como um alerta histórico: anistiar crimes que atentam contra a democracia pode não apenas violar a Constituição de 1988, mas também comprometer a responsabilidade internacional do Brasil, gerando condenações e fragilizando o próprio processo democrático.
5 - No caso específico do ex-presidente Jair Bolsonaro, que responde por suposta tentativa de golpe e incitação aos atos antidemocráticos, seria juridicamente viável incluí-lo em uma anistia geral?
Kennedy Bispo Silva Conceição: Anistia para o Ex-Presidente da República somente seria possível na hipótese de cometimento efetivo de crime. Ele ainda está em julgamento, por isso, tem em seu favor o princípio da presunção de inocência, aplicável a todo cidadão brasileiro. Ao que consta, o Ex-Presidente da República não admite que cometeu qualquer crime. Agora, sem falar em nomes ou situações específicas, eu gostaria de dizer que no plano técnico-jurídico, a discussão mais delicada diz respeito justamente à possibilidade de estender a anistia a agentes do próprio Estado que tenham, em tese, atentado contra a ordem constitucional. Aqui se abre um ponto de tensão entre política e direito, pois enquanto a anistia é um ato político por excelência, o seu conteúdo não pode colidir com princípios estruturantes da Constituição. A experiência histórica brasileira com a Lei de Anistia de 1979 demonstra os riscos dessa escolha. Ao abarcar tanto opositores quanto agentes estatais que praticaram graves violações de direitos humanos, a lei acabou funcionando como instrumento de autoproteção do regime autoritário, gerando até hoje questionamentos jurídicos e políticos. Conceder anistia a quem deveria zelar pela ordem democrática, mas a atenta, pode configurar um incentivo à impunidade e à repetição de condutas semelhantes. Do ponto de vista constitucional, o art. 60, § 4º, IV, consagra como cláusula pétrea a proteção aos direitos e garantias fundamentais, entre os quais se encontra o próprio Estado Democrático de Direito. Anistiar crimes que visem abolir a ordem democrática, sobretudo praticados por aqueles incumbidos de defendê-la, seria uma contradição insanável. Por exemplo, um Presidente que atenta contra a Constituição Federal, o livre exercício dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, bem como contra o cumprimento das leis e das decisões judicias, nos termos do art. 85, II e VII, da Constituição, comete crime de responsabilidade. Além disso, compromissos internacionais de direitos humanos assumidos pelo Brasil limitam a possibilidade de perdão para condutas que atentem contra valores fundamentais da comunidade internacional. Assim, a reflexão sobre a anistia deve considerar não apenas sua utilidade política imediata, mas sobretudo seus efeitos jurídicos de longo prazo. A questão que se põe é a seguinte: pode o Estado democrático admitir que seus próprios guardiões, quando agem para fragilizá-lo, sejam anistiados? A resposta exige cautela, pois a concessão de anistia em tais casos não é apenas uma opção legislativa, mas uma questão de fidelidade à Constituição e ao pacto democrático que ela simboliza.