Nenhum órgão governamental pode exigir a interdição judicial de servidores públicos com transtornos mentais para conceder benefícios como aposentadoria e pensão. Esse esclarecimento foi feito em audiência pública nesta terça-feira (27) na Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência. Deputados da comissão receberam denúncias de pessoas que estavam conseguindo se aposentar somente após serem interditadas judicialmente.
A diretora do Ministério do Planejamento, Renata Vila Nova, reconheceu que a prática de interditar pessoas para aposentadoria ainda acontece, mesmo com normas proibindo essa prática. Com o objetivo de esclarecer essa proibição, ela informou que o Ministério do Planejamento publicou no último dia 26 uma portaria alterando o Manual de Perícia Oficial em Saúde.
"Considerando a dúvida que poderia ter sido gerada pela primeira versão do Manual de Perícia, nós já fizemos a alteração. É um Manual de Perícia Oficial em Saúde do Servidor, no qual a gente esclarece que não há exigência de curatela para concessão de qualquer benefício ao servidor aposentado ou pensionista. A gente deixou mais claro justamente para evitar qualquer atitude ou procedimento contrário ao que a gente orienta quando é procurado por algum órgão", disse.
Autor do requerimento da audiência, o deputado Eduardo Barbosa (PSDB-MG) afirmou que é preciso analisar essa alteração para checar se ela está de acordo com a Lei Brasileira de Inclusão, a LBI. “Se a mudança estiver de acordo com o que a LBI estabelece, é preciso fazer um trabalho de divulgação para órgãos estaduais e municipais, e inclusive para o próprio servidor federal, que precisa ser o primeiro a conhecer aquilo que está garantido como um direito dele”, disse o deputado. A Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência irá solicitar um estudo à consultoria legislativa da Câmara para avaliar as alterações feitas no Manual de Perícia Oficial em Saúde.
Normas
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, norma da qual o Brasil é signatário, reconhece a pessoa com transtorno mental severo como pessoa com deficiência, na medida em que o seu transtorno, em interação com o ambiente social, pode impedir sua participação na sociedade. A Lei Brasileira de Inclusão, que entrará em vigor em janeiro de 2016, estabelece que curatela de pessoa com deficiência é medida protetiva extraordinária que irá durar o menor tempo possível. A curatela afetará apenas os direitos patrimoniais e negociais. Já a interdição é o processo judicial em que se requer a curatela de uma pessoa.
O deputado Eduardo Barbosa ressaltou que a valorização da autonomia da pessoa com deficiência ainda é muito recente, sendo necessário realizar um trabalho de esclarecimento junto aos profissionais responsáveis pelas perícias, para que eles apliquem as normas atuais e não exijam a interdição para conceder a aposentadoria no caso de transtornos mentais.
O médico psiquiatra e presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), Walter Ferreira de Oliveira, lembrou que não se usa mais o termo “alienação mental”, expressão imortalizada por Machado de Assis em sua obra “O Alienista”. Ele ressaltou que atualmente se usa a palavra transtorno. “A interdição de uma pessoa com transtornos mentais é uma medida extrema e deve ser sempre o último recurso, jamais deve ser utilizada como regra”, disse o médico. Walter Ferreira considera que a interdição como exigência para conceder a aposentadoria é uma medida que fere a Constituição. “Os advogados da associação apontam que a exigência da interdição é desproporcional, não razoável e fere os direitos individuais previstos no artigo quinto”, explicou.
Problemas também no INSS
A deputada Mara Gabrilli (PSDB-SP) afirmou que a exigência da interdição pelos peritos do INSS está atrapalhando a solicitação do Benefício de Prestação Continuada, o BPC, nos casos de transtornos mentais. “Recebi relatos de pessoas que acabaram sendo prejudicadas por uma conduta que não condiz com a Lei Brasileira de Inclusão e nem com todo o esforço que a gente vem fazendo para que as pessoas, não só pessoas com deficiência, possam exercer seus talentos e seu protagonismo”, disse a deputada, que solicitou maneiras mais eficazes, como cartilhas de esclarecimento, para fazer a informação correta chegar às equipes de perícia e ao público em geral. O BPC é um benefício de um salário mínimo para o idoso e à pessoa com deficiência, de qualquer idade, que comprovem não possuir meios para prover a própria manutenção, nem tê-la provida por sua família.
O coordenador de Promoção dos Direitos das Pessoas com Deficiência do Ministério da Mulher, Igualdade Racial e Direitos Humanos, Wederson Rufino dos Santos, admitiu que uma série de denúncias sobre a exigência da interdição para a concessão de benefícios previdenciários tem chegado ao ministério. “O nosso posicionamento é muito claro; essa é uma prática ilegal e que não deve acontecer”, afirmou.
A partir das denúncias, um grupo interministerial propôs medidas como a mudança no Manual de Perícia Oficial em Saúde e a necessidade de fazer essa orientação técnica chegar às equipes de avaliação pericial. “É preciso discutir e descobrir porque a interdição está sendo exigida, dado que os atos normativos já superaram isso”, disse o coordenador. Na avaliação de Wederson, profissionais do INSS podem estar ignorando as orientações do Instituto. “São mais de 40 mil servidores. É possível que práticas individuais acabem desconsiderando as orientações que o Instituto estabelece”, disse ele.