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A imprescritibilidade das verbas relativas à escravização contemporânea de seres humanos
Carla Reita Faria Leal e Bruna Figueiredo Oliveira Silva
Recentemente o Tribunal Superior do Trabalho (TST) reconheceu a imprescritibilidade do direito de ajuizar ação trabalhista em episódio no qual uma família manteve empregada doméstica em condições análogas à escravidão por cerca de 20 anos. De acordo com a decisão, de relatoria da Ministra Liana Chaib, nas ocasiões envolvendo crimes contra a humanidade, como na situação analisada, a prescrição trabalhista deve ser interpretada de maneira sistêmica.
O caso se refere a uma Ação Civil Pública (ACP) ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) e pela Defensoria Pública da União (DPU) de São Paulo, com base em denúncia realizada em junho de 2020, que foi comunicada pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, em que o seu teor se referia à situação de uma empregada doméstica idosa que estava sendo submetida a condições degradantes, assim como a maus tratos, a episódios de agressões e a cerceamento de liberdade.
Nos autos da ACP em questão, o juiz da 53ª Vara do Trabalho de São Paulo deferiu o pedido de realização de diligência no local em que a doméstica residia e prestava serviços e, por ter sido apurada a veracidade da denúncia, houve o resgate da idosa, ao mesmo tempo que foi lavrado o auto de prisão em flagrante delito contra uma das rés, visto que o delegado responsável pelo caso entendeu que a situação se amoldou à figura típica de reduzir alguém em condições análogas de escravo, prevista no artigo 149 do Código Penal.
Na ocasião, também foram apurados o cometimento dos crimes de abandono de incapaz e omissão de socorro em face da vítima, o que fez com que todos os réus investigados fossem indiciados por esses crimes e o de redução de pessoas à condição análoga à de escravo já mencionado, visto que houve a constatação de que a vítima morava em quarto da residência destinado a depósito, cuja situação era precária e degradante, sendo que no cômodo não havia acesso à nenhum banheiro do imóvel, ficando a resgatada impossibilitada de realizar necessidades básicas com dignidade. A vítima não recebia refeições nem salário regular.
Relatos de vizinhos também acrescentaram ao caso a descrição de episódios de violência verbal sofridos pela empregada, além de uma circunstância em que houve a omissão de socorro por parte dos empregadores, ocasião em que a idosa havia sofrido uma queda e, mesmo tendo passado a noite gritando por ajuda aos patrões, não foi socorrida.
Em virtude do quadro fático verificado, foi requerida na ACP a condenação dos réus a indenizar a vítima em danos morais individuais e em por danos morais coletivos, além de verbas trabalhistas. Na sentença condenatória houve o reconhecimento dos pedidos indenizatórios, bem como se reconheceu a existência do vínculo empregatício desde 1998, pelo que foi determinado que os patrões efetuassem o pagamento de salários e demais verbas trabalhistas, como férias e 13º, observando-se, porém, a prescrição trabalhista.
O Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região manteve a condenação, mas majorou as indenizações para 350 mil reais (danos morais individuais) e 300 mil reais (danos morais coletivos). Em virtude disso, houve a interposição de recurso ao TST, em que os empregadores buscavam a reforma total do acórdão, enquanto o MPT e a DPU questionavam a prescrição trabalhista aplicada no primeiro grau e mantida no segundo grau.
Na ocasião, a Ministra Liana Chaib entendeu que não é cabível a aplicação de prescrição trabalhista nos casos de trabalho análogo à escravidão, pois tal situação não é correlata àquela do empregado que busca a prestação jurisdicional pelos seus direitos. Para a relatora, as situações em muito se distanciam, uma vez que na primeira hipótese, redução à condição análoga a de escravo, o trabalhador está sujeito a vários tipos de violências, inclusive à privação de liberdade para ir atrás do que lhe é devido.
No acórdão também foi destacado que o caso se refere a um crime contra a humanidade, em que se vê grande afronta aos direitos humanos. Com isso, o TST aplicou, de forma analógica, aos casos de trabalho em condição análoga à de escravo, o entendimento firmado na Súmula n.º 647 do STJ, na qual se reconhece a imprescritibilidade das ações indenizatórias por danos morais e materiais advindas de perseguição política, junto à violação de direitos fundamentais durante o regime militar.
Desta forma, o TST reconheceu que a vítima poderá cobrar em juízo as verbas trabalhistas devidas em todo o período trabalhado, independentemente de prazo prescricional. Quanto à condenação à indenização por danos morais coletivos, a relatora entendeu por sua redução para 200 mil reais, ao levar em conta a capacidade econômica dos empregadores, bem como a ideia de que esta tem caráter meramente punitivo e pedagógico, uma vez que a violação de direitos fundamentais é irreparável.
Louvamos a decisão e esperamos que essa decisão seja uma de muitas nesse sentido!!
Carla Reita Faria Leal e Bruna Figueiredo Oliveira Silva são membros do Grupo de Pesquisa sobre meio ambiente do trabalho da UFMT, o GPMAT.