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Domingo, 16 de novembro de 2025

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As incostitucionalidades da PEC da blindagem

Após a forte reação negativa à chamada PEC da Blindagem, a tentativa de alterar a Constituição para proteger parlamentares de processos criminais foi rejeitada nesta quarta-feira (24/9) na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado.

Como a rejeição foi unânime, o regimento do Senado estabelece que a proposta já está enterrada e não precisa ser votada no plenário da Casa.

A PEC previa que processos criminais contra deputados e senadores só pudessem ser iniciados no Supremo Tribunal Federal (STF) após aval do Senado ou Câmara, em votação secreta.

A tentativa de implementar essa mudança, deu-se pelo fato de que hoje, o STF pode iniciar ações penais livremente, e as casas legislativas têm poder de suspender depois os processos, o que não costuma ocorrer.

Em termos mais aprofundados, a PEC tinha como objetivo modificar o artigo 53 da Constituição, que trata das garantias e prerrogativas dos congressistas, e acrescentar novos dispositivos que tornariam mais rígidas as exigências para que deputados e senadores sejam alvos de processos judiciais.

Desde a redemocratização do país, o tema já passou por transformações relevantes.

Vale destacar que da promulgação da Constituição de 1988 a 2001, nenhum processo criminal podia ser aberto contra parlamentares sem autorização da respectiva Casa legislativa (Câmara ou Senado). O Supremo Tribunal Federal (STF) não poderia julgar um deputado ou senador se a autorização fosse negada ou se o tema não fosse apreciado.

A regra virou símbolo da blindagem corporativa e da impunidade.

Em 2001, foi aprovada a emenda número 35, que extinguiu essa exigência.

A norma, que está em vigência até hoje, passou a permitir que o STF abra ações penais contra parlamentares sem necessidade de aval prévio do Legislativo, embora a Constituição tenha mantido a possibilidade de a Casa sustar o processo após o recebimento da denúncia, por decisão da maioria absoluta dos parlamentares, caso o crime tenha sido cometido após a diplomação, o que não costuma ocorrer, conforme já mencionados anteriormente.

Contudo, a PEC da Blindagem, visava restabelecer e ampliar a exigência de autorização prévia do Congresso para atos judiciais, mesmo se o suposto crime não estiver relacionado ao mandato e for, por exemplo na área civil.

Porém, a Constituição já prevê que parlamentares podem ser presos em flagrante de crime inafiançável (como homicídio, tráfico de drogas ou tortura). Ainda assim, mesmo nesses casos, a prisão precisava ser comunicada à respectiva Casa em até 24 horas, que pode decidir pela soltura do acusado. A mudança que a PEC pretendia, é que nesse caso como exemplo, a votação sobre a prisão, que hoje é nominal, passaria a ser secreta.

O texto da famigerada PEC ainda pretendia introduzir que os membros do Congresso Nacional não pudessem ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável, nem processados criminalmente, sem prévia licença de sua Casa legislativa, e que a votação deveria ocorrer em até 90 dias. E mais, se o tema não fosse votado, a licença para prisão seria considerada negada.

No que tangem as chamadas medidas cautelares, como buscas e apreensões, bloqueios de bens, quebras de sigilo bancário ou telefônico e afastamento temporário do cargo, não eram mencionadas diretamente na Constituição de 1988. No entanto, na prática, essas medidas dependiam do mesmo raciocínio aplicado à abertura de processos, exigindo autorização da Casa legislativa à qual pertencia o parlamentar.

Com a reforma de 2001, e especialmente com a consolidação da jurisprudência do STF nos anos seguintes, essas medidas passaram a ser aplicáveis a parlamentares, independentemente de autorização da Câmara ou do Senado, desde que expedidas pelo STF.

Vale destacar que atualmente, parlamentares são julgados exclusivamente pelo Supremo Tribunal Federal, bem como o presidente da República, o vice-presidente, os ministros de Estado e o procurador-geral da República. Com a PEC da Blindagem, esse foro privilegiado seria ampliado para presidentes de partidos que tenham representação no Congresso.

Ao nosso ver, a PEC, se aprovada, violaria às escâncaras o princípio constitucional da isonomia/igualdade, por permitir, ao contrário do que ocorre com os cidadãos comuns, que políticos seja acobertado por crimes por eles cometidos. Segundo esse princípio, todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, é o que reza o artigo 5º, caput, da Constituição. Esse preceito é cláusula pétrea da CF, que não pode ser alterada por emenda constitucional, na forma do artigo 60, parágrafo 4ª, inciso IV, da Carta Magna.

De outra banda, ocorreria com essa PEC uma transgressão reflexa ao princípio republicano, que, embora não previsto textualmente no citado artigo 60 como cláusula pétrea, está revestido de petrealidade, segundo a maioria dos juristas de escol, a partir do plebiscito de 1993.

Por outro lado, violado também restaria, o princípio da separação de poderes, que é também uma cláusula pétrea, prevista no artigo 60, 4º, III, da Constituição, não podendo, portanto, ser inobservado. Em efeitos práticos, conforme acima já dito, o Judiciário e o MP ficariam impedidos de investigar e processar os parlamentares acusados de crime antes do aval do parlamento.

De forma também reflexa, porque não prevista expressamente no aludido artigo 60 da CF, restaria violado o princípio democrático, que permeia toda tessitura constitucional. E nesse aspecto, é forçoso reconhecer que ele estrutura a Constituição, sendo um seu pilar fundamental, como pontuado na ADPF 5525 pelo STF.

De mais a mais, violado também restaria o princípio de acesso à jurisdição, insculpido no artigo 5º, XXV, da Constituição. É que de nada adiantaria aos cidadãos e a sociedade civil organizada se socorrerem do Judiciário para coibir e punir parlamentares que tenham cometido crime, se isto depender de autorização do parlamento para fazê-lo.

Por fim, cumpre salientar, também, que o Ministério Público, como dominus litis, na forma do artigo 129, I, da CF, ficaria privado, com a extensão desejada, de promover a ação penal contra deputados e senadores, o que, no meu entender, outrossim, configura violação de cláusula pétrea.

Enfim, não deu certo.

A sociedade brasileira grita em sentido diametralmente oposto, ou seja, ela almeja o fim da impunidade, como as amplas manifestações públicas sinalizaram.

Não podemos confundir prerrogativas com proteção àquele que comete crimes, configurando portas abertas para a transformação do legislativo em abrigo seguro para criminosos de todos os tipos, em completa destruição de princípios constitucionais.

Victor Hugo Senhorini é Advogado e Consultor Jurídico, Professor Universitário de Direito Público.
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