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Sábado, 25 de janeiro de 2025

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A tornozeleira eletrônica não é obrigatória na Execução Penal.

A monitoração eletrônica é um marco nas políticas penais desde a edição da Lei Federal 12.258/2010. Sua promessa era a de modernizar o sistema de execução penal, oferecendo alternativas ao encarceramento e ampliando as possibilidades de reintegração social dos condenados. Ocorre que a expansão do uso das tornozeleiras eletrônicas trouxe consigo desafios jurídicos, sociais e éticos, especialmente quanto à ponderação do controle estatal e o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana. Analiso aqui os principais aspectos e desafios dessa medida.
 
Em respeito ao direito individual à dignidade (CRFB/88, art. 1º, III) e à individualização da pena (CRFB/88, art. 5º, XLVI), dentre outros, a Lei de Execução Penal (LEP) estabelece a “humanização da pena” como um de seus pilares, buscando compatibilizar a aplicação da pena com os direitos do condenado. Nesse sentido, o art. 146-B introduziu a possibilidade do monitoramento eletrônico, conferindo ao juiz a faculdade de determinar o uso do dispositivo em situações como progressão de regime, saídas temporárias e prisão domiciliar.
 
O verbo não deixa dúvida. “Poderá” indica ação, faculdade e não determinação, ficando a critério do juiz avaliar se a medida será adotada no caso concreto. Deve se pautar no princípio da proporcionalidade, analisando necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito, conforme determina o critério geral das medidas cautelares pessoais (CPP, art. 282, I e II). Além disso, a Lei Federal 12.258/2010 inseriu na LEP o art. 146-D, que deixa claro que não existe monitoramento eletrônico ex lege. Esse dispositivo dispõe que “a monitoração eletrônica poderá ser revogada quando se tornar desnecessária ou inadequada”.
 
Dessa forma, a medida deve ser avaliada caso a caso, com justificativa específica e concreta que reflita tanto a função repressiva quanto a preventiva da pena. Apesar disso, na prática, observa-se a aplicação “automática” da tornozeleira eletrônica, desvinculada da análise individualizada ou da finalidade ressocializadora, violando os objetivos da LEP e princípios constitucionais, como o devido processo legal, a proporcionalidade e a dignidade da pessoa humana.
 
Consagrado no ordenamento jurídico brasileiro, o princípio da proporcionalidade atua como salvaguarda contra o abuso de medidas restritivas de direitos. Sua aplicação à monitoração eletrônica exige a observância de três critérios fundamentais:
 
1. Adequação: A medida deve ser eficaz para atingir os objetivos que se propõe. No caso da monitoração, a eficácia dependerá de sua capacidade de prevenir reincidências, facilitar a reintegração social e garantir a fiscalização sem comprometer desnecessariamente a liberdade do apenado.
 
2. Necessidade: A monitoração deve ser adotada somente quando não houver alternativas menos restritivas que possam alcançar o mesmo objetivo. Medidas como supervisão presencial, cumprimento de obrigações periódicas ou programas de trabalho podem ser soluções viáveis e menos invasivas, dependendo das circunstâncias.
 
3. Proporcionalidade em sentido estrito:
A análise deve ponderar os benefícios esperados da monitoração em relação aos prejuízos causados ao monitorado. A exposição social, a perda de oportunidades de reintegração e o estigma associado ao uso da tornozeleira frequentemente superam os benefícios, especialmente quando não há risco concreto de reincidência ou ameaça à segurança pública.
 
Embora o princípio da proporcionalidade exija que medidas restritivas sejam adequadas, necessárias e proporcionais, alternativas menos gravosas são frequentemente ignoradas. Soluções como supervisão presencial, comparecimento periódico ou programas de trabalho são viáveis e menos invasivas, mas recebem pouca atenção por parte do Ministério Público e, sobretudo, dos Juízos de Execução Penal. Além disso, a ausência de infraestrutura penal adequada, como colônias agrícolas e casas de albergado, agrava a dependência do monitoramento eletrônico, desviando recursos de políticas mais abrangentes de ressocialização.
 
O princípio da proporcionalidade exige não apenas uma análise abstrata, mas também uma aplicação prática, especialmente no contexto da monitoração eletrônica. Decisões como a ADPF 347 (STF), que reconheceu o estado de coisas inconstitucional do sistema carcerário brasileiro, reforçam a necessidade de medidas alternativas proporcionais e individualizadas; é essencial que o Poder Judiciário desenvolva diretrizes claras para evitar o uso automatizado e não fundamentado da monitoração.
 
A estigmatização associada ao uso da tornozeleira eletrônica pode ser analisada sob diferentes perspectivas que explicam como práticas de vigilância e controle estatal podem impactar nas dinâmicas sociais e subjetivas dos indivíduos monitorados.
 
Erving Goffman, na obra “Estigma: Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada”, aborda como símbolos visíveis de diferenciação social, a exemplo da tornozeleira eletrônica, atuam como marcas de desvalorização que reforçam preconceitos, exclusões e a percepção de “desvio” por parte de toda a sociedade. Tais estigmas, segundo Goffman, restringem as possibilidades de interação social e promovem uma segregação simbólica que compromete os esforços de reintegração dos indivíduos ao convívio comunitário.
 
Michel Foucault, em “Vigiar e Punir”, amplia a análise ao contextualizar a tornozeleira eletrônica como parte de um aparato mais amplo de tecnologias de vigilância, que consolidam o que ele denominou de “sociedade disciplinar”. Ainda, através do conceito de “panoptismo”, Foucault ilustra como estes equipamentos reforçam uma relação assimétrica de poder, onde o indivíduo monitorado está constantemente consciente de sua observação potencial. O “estado de vigilância permanente” promove uma internalização do controle, moldando comportamentos e subjetividades conforme as normas impostas pelo poder punitivo, muitas vezes sem oferecer alternativas efetivas para a superação das condições que levaram ao delito.
 
Goffman e Foucault sugerem que, sem políticas de inclusão social amplas e estruturadas, a monitoração eletrônica pode agravar desigualdades já existentes, perpetuando mecanismos de exclusão social e psicológica. Assim, a tornozeleira, ao invés de cumprir sua promessa de controle humanizado e ressocializador, pode funcionar como um símbolo material de controle punitivo e estigmatização social, passando ao largo dos princípios de dignidade da pessoa humana e da ressocialização.
 
A dependência do monitoramento eletrônico como substituto de infraestrutura adequada revela uma falha estrutural do Estado. O desvio de recursos que deveriam ser destinados à criação de colônias agrícolas e casas de albergado, conforme prevê a LEP, demonstra uma priorização inadequada de políticas. Para que a ressocialização seja efetiva, é necessário um compromisso do Estado com políticas públicas que promovam a dignidade e a inclusão dos apenados, em vez de relegá-los a uma “prisão virtual” (“prisão mental”).
 
Estudos indicam que a monitoração eletrônica, quando aplicada sem estratégias de reintegração social, não reduz significativamente as taxas de reincidência criminal. Uma análise da literatura internacional sobre o tema revela que os resultados são pouco abrangentes e monitoram o recidivismo dos participantes por tempo limitado, não evidenciando uma diminuição consistente na reincidência.
 
Além disso, a utilização indiscriminada da tornozeleira eletrônica pode aprofundar a exclusão social dos monitorados. O estigma associado ao uso do dispositivo pode dificultar a reintegração no mercado de trabalho e nas relações sociais, comprometendo a percepção de dignidade individual. A Defensoria Pública do Paraná destaca que, embora a monitoração eletrônica seja uma alternativa mais humanizada ao encarceramento, o estigma social sofrido pelos monitorados pode dificultar sua reintegração social.
 
No contexto brasileiro, a prática recorrente de generalizar o uso de tornozeleiras eletrônicas revela um afastamento desses padrões internacionais, transformando uma medida alternativa em mais um instrumento de exclusão e estigmatização. Para alinhar-se aos parâmetros humanitários, é imprescindível que a aplicação da monitoração eletrônica seja conduzida com critérios rigorosos, priorizando a ressocialização e minimizando os danos sociais e psicológicos causados aos monitorados.
 
Abaixo, listo alguns dos principais impactos dessa grave medida:
 
1. Estigmatização e exclusão social: O uso da tornozeleira torna a condição penal do indivíduo visível, submetendo-o a preconceitos e discriminação em ambientes profissionais, educacionais e comunitários. Essa visibilidade perpetua o estigma de criminalidade, dificultando a construção de uma nova identidade social e o estabelecimento de vínculos positivos com a sociedade.
 
2. Fragilização psicológica: A constante presença do dispositivo funciona como um lembrete da condição penal, criando um ambiente de vigilância que limita a liberdade subjetiva do apenado. Essa “prisão mental” pode gerar ansiedade, depressão e retraimento social, prejudicando o processo de reintegração e ampliando os efeitos punitivos além do necessário.
 
3. Barreiras à ressocialização: A estigmatização associada ao monitoramento eletrônico compromete as oportunidades de trabalho e educação, elementos essenciais para a ressocialização. Além disso, muitos apenados relatam dificuldades em acessar espaços públicos, como instituições financeiras e locais de culto, devido à presença do dispositivo.
 
4. Custos econômicos e a eficiência do Estado: A implementação do monitoramento eletrônico exige investimentos significativos em tecnologia, manutenção e supervisão. Contudo, a substituição de regimes semiabertos por tornozeleiras, como uma solução para a ausência de infraestrutura prisional adequada, representa um desvio de recursos e pode mascarar a necessidade de políticas públicas efetivas para a melhoria do sistema penal.
 
O uso automatizado banaliza a medida, transformando-a em uma espécie de “prisão virtual”, custodiando o indivíduo em uma “prisão mental”, combina os ônus do encarceramento com os desafios da reinserção social. Além disso, tal prática desconsidera a individualização da pena, princípio fundamental do Estado Democrático de Direito, e viola os direitos humanos dos apenados.
 
O uso indiscriminado de medidas como o monitoramento eletrônico indica a falência do modelo de ressocialização e reabilitação. Não é segredo para ninguém que hoje se presencia uma queda da oferta de postos de trabalho e estudos no cárcere, que deveriam ocorrer principalmente no regime semiaberto – o qual vem sendo substituído pelo uso de tornozeleira eletrônica. Estas pessoas enfrentam sérias dificuldades de qualificação profissional, educacional e até de subsistência, fato intensamente agravado pela monitoração.
 
O pensamento simplista viola o sistema progressivo de cumprimento de pena e acaba por reproduzir um juízo ultrapunitivista, cuja retina detecta apenas o binômio (i) corpo na prisão e (ii) prisão no corpo. A pessoa humana passou pela prisão. Seu corpo esteve na prisão. Mas a prisão ainda está em seu corpo.
 
Para que a monitoração eletrônica cumpra seu propósito de oferecer uma alternativa humanitária ao encarceramento, é necessário que sua aplicação seja pautada por critérios claros e alinhada aos objetivos da execução penal. Algumas propostas incluem:
 
1. Fortalecimento da fundamentação judicial: O uso da tornozeleira deve ser sempre acompanhado de uma análise criteriosa das circunstâncias do caso, demonstrando a necessidade e a adequação da medida.
 
2. Desenvolvimento de políticas públicas de apoio: A monitoração deve ser integrada a iniciativas que promovam a reinserção social, como programas de emprego, educação e assistência psicológica.
 
3. Revisão e controle periódico: As decisões de monitoramento devem ser revistas regularmente, para garantir que a medida continue sendo necessária e eficaz.
 
4. Investimento em infraestrutura penal: A criação de unidades adequadas para o cumprimento de penas em regimes menos gravosos reduziria a dependência do monitoramento eletrônico, garantindo maior diversidade de opções ao sistema penal.
 
5. Sensibilização da sociedade: É fundamental educar a sociedade sobre os objetivos da monitoração eletrônica, reduzindo o estigma associado ao uso do dispositivo e promovendo a aceitação dos apenados.
 
A monitoração eletrônica, quando bem fundamentada e aplicada, pode ser uma importante ferramenta para modernizar o sistema penal e promover a reintegração social. No entanto, como salientado, sua utilização indiscriminada e desvinculada de uma análise criteriosa compromete os princípios constitucionais e os objetivos da execução penal.
 
O Poder Judiciário, em conjunto com as políticas públicas, deve resgatar a função original da monitoração eletrônica, assegurando que ela opere como um mecanismo de inclusão e não de exclusão.

Fernando Faria é advogado com atuação em todo território nacional, notadamente em Mato Grosso, São Paulo e Brasília. Sua trajetória profissional inclui a condução de casos de alta complexidade e repercussão nacional.
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