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PRECISAMOS FALAR SOBRE O POMERI

Nos últimos meses, 276 jovens infratores foram liberados por falta de vagas no Pomeri, revela juiz; veja entrevista

29 Jun 2016 - 09:00

Da Redação - Paulo Victor Fanaia Teixeira

Foto: Rogério Florentino Pereira/OD

Juiz da Segunda Vara da Infância e da Juventude, Túlio Duailibi

Juiz da Segunda Vara da Infância e da Juventude, Túlio Duailibi

Apreendidos por atos que vão de contravenção a crimes, de brigas familiares a assassinatos, o Estado de Mato Grosso hoje possui cerca de 180 jovens internados em 06 Centros Sócio Educativos. O maior deles, o Pomeri, situado em Cuiabá, suporta 75 deles, divididos em 30 celas "sem estrutura". Ainda assim, faltam vagas. A escalada da violência, que atinge em sua grande maioria jovens, negros, pobres e moradores de periferia fazem a cada dia novos internados. E são muitos. Tantos que, afirma o juiz da Segunda Vara da Infância e da Juventude, Túlio Duailibi, nos últimos 10 meses, 276 deles foram liberados simples falta de estrutura. O cenário é alarmante, ele relata, falta vaga, faltam condições sanitárias e sobra descaso pelo poder público. O resultado, conclui, é um cenário caótico e a solução é única: Precisamos falar sobre o Pomeri.

Você acompanha agora a primeira parte da entrevista especial realizada por Olhar Jurídico com o magistrado. Ele avalia o cenário, problematiza e apresenta soluções.  

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Juiz Túlio Duailibi: nos últimos 10 meses, 276 pedidos de internação foram indeferidos. O que está acontecendo?

O sistema socioeducativo, no aspecto do ato infracional (que seria o crime ou a contravenção) não se difere muito do sistema prisional no seguinte sentido: temos o meio aberto e o meio fechado. O meio fechado são as unidades de internação, que temos em Cuiabá, Cáceres, Barra do Garças, Rondonópolis, Sinop e Lucas do Rio Verde. No meio aberto eles estão sob responsabilidade dos municípios. Mas, o que chama mais a atenção é o meio fechado, pela gravidade do ato infracional. Temos essas seis unidades para gerenciar no estado inteiro. A de maior capacidade é a unidade de Cuiabá, o Pomeri.

Acontece que o sistema do meio fechado não recebe investimento, tanto é que não tivemos aumento na oferta de vagas, pelo contrário, tivemos uma regressão nos últimos anos. Mas porque uma regressão se acabou de inaugurar em 2015 uma unidade em Lucas do Rio Verde, construída em Consórcio com o município de Sorriso e Nova Mutum? Porque tínhamos no Pomeri um bloco muito antigo, de “tijolinho à vista” (sem condições alguma de habitação de animais, muito menos de ser humano), e que foi destruída por total incapacidade de recebimento dos internos. Com isso, tivemos redução no número de vagas ofertadas.

Pois bem, dentro da unidade Pomeri, temos a ala dos “internos provisórios” e a ala dos “internos de sentença”. Então tínhamos 40 vagas para estes e 40 para aqueles.

A parte do Pomeri destinada ao “interno provisório” é dividida em “A” e “B”, ambas com capacidade para 20 pessoas (embora hoje para 15). O que totaliza 35 vagas para provisórios.

Entretanto, tínhamos mais internos “de sentença” que internos “provisórios” e, tínhamos, na época, naquela ala que foi destruída, 18 adolescentes. Quando descobrimos essa decisão judicial determinando a devolução daquela ala em caráter de urgência, por falta de condições de recebimento, nós precisamos pensar em uma solução e o sistema transferiu esses 18 internos para a ala “A” dos “provisórios”.

Portanto, “em definitivo” temos 40 internos e na ala “A” do provisório, hoje, cerca de 10 a 15. De modo que a ala dos “provisórios” tem capacidade apenas para mais outros 15. Então vivemos hoje esse problema.

É possível abarcar a capacidade máxima do Pomeri?

É possível, mas arriscado. Porque, como em toda unidade de sistema de privação de liberdade, há conflitos, então temos que ficar remanejando estes adolescentes, pois um não consegue conviver com outro, por exemplo. Então a gente sofre com isso.
Há um ato normativo em nossa Corregedoria que diz que o interno para entrar na unidade tem que ter a anuência de um juiz. O juiz corregedor, que sou eu, tem que autorizar o ingresso desse adolescente.

Então a conclusão óbvia é: se eu tenho que autorizar, qualquer adolescente que entra acima da capacidade máxima de lotação, qualquer coisa que acontecer lá será de responsabilidade minha. Percebemos que isso estava sendo um fator de comodismo para quem tem que investir no sistema.

Porque o juiz vai colocando (internos no Pomeri) indefinidamente e o sistema segue sem receber investimentos. Se amanhã acontecer alguma coisa com o adolescente que está lá acima da capacidade, a primeira pergunta será “de quem é a responsabilidade?”, e vão vir para cima de mim, é lógico, pois fui eu quem autorizou. Então resolvemos, para evitar responsabilização futura, tomar essa decisão de não permitir que se ingresse acima da capacidade de lotação.

Acontece que, como nós só temos 06 unidades em todo o Estado, é natural que os pedidos do interior venham para Cuiabá. A população hoje do Pomeri não é exclusiva da capital, tem internos vindos de Várzea Grande, do Araguaia, de Sinop, de Nova Mutum, de todas as regiões do estado. São exatamente estes pedidos que a gente indefere. Eu também peço vagas no interior, pois aqui está lotado.                                                                                                                                                                            
* Fachada do Centro Sócio Educativo do Pomeri, Cuiabá.  Foto: Paulo Victor Fanaia Teixeira        

Diante disso, o que tem sido feito?

Ainda temos decretado internação, mas não autorizando o recolhimento do jovem na unidade (do Pomeri), pedimos vagas no interior e ao mesmo tempo, comunicando o secretário de Estado de Justiça e Direitos Humanos (SEJUDH) que estamos deixando de recolher aquele jovem por falta de vaga.

E o que acontece?

Fiz vários pedidos de informação para a SEJUDH em relação aos investimentos, o orçamento, para ver qual era o investimento do órgão para o sistema sócio-educativo. Segundo informações que temos, existe um procedimento de reforma, um processo de licitação aberto desde 2012 e a última informação que tive é que eles não conseguem concluir esse processo, que inclusive já teve uma licitação frustrada e “está lá”. Nota-se que se o Processo Administrativo foi aberto em 2012, então o Pomeri carece de investimentos desde muito antes.

Estamos com esse problema, mas a grande pergunta que faço a mim mesmo, e isso já é público: até que ponto é benéfico o sistema sócio educativo ficar vinculado a um órgão que tem um sistema prisional? Porque SEJUDH cuida de sistema prisional.

É natural que pelo tamanho desse sistema, pela repercussão, pela população carcerária e pela estrutura de carreira dos servidores, que também é muito maior, que nós do sócio educativo sejamos “consumidos” pelo sistema prisional. Então temos um prejuízo no sentido de que os investimentos não chegam ao sistema sócio educativo, pois se canaliza muito mais no prisional. Mas temos dois sistemas e precisamos conviver com eles.

Suponhamos que eu seja um jovem criminoso ou contraventor. Eu chego à Vara da Infância e da Juventude. O que acontece comigo?

Se você tiver, digamos, “sorte” (do Pomeri) estar lotado, você será liberado, se sobrar uma vaga, você cai lá.

Mas o que nos deixa mais preocupado é o seguinte: se não me engano, no que diz respeito à justiça criminal, quando é decretada uma prisão, esse mandado é enviado à um órgão do Poder Executivo para que o próprio sistema público de segurança cumpra esse mandado. Já no sistema sócio educativo, e esse é mais um prejuízo que temos, nós não temos um órgão dentro da SEJUDH que cumpra esses mandados de internação. Então, se não tem vaga, eu não tenho para quem encaminhar. Nem eu, nem meus colegas juízes do interior.

Vamos supor: em Primavera do Leste a juíza quer decretar internação, e sem vaga, pede vaga para outras cidades. Se ela não tem vaga, nem eu, nem meus colegas, esse mandado ficará ali na secretaria da Vara. Ele não vai para nenhum lugar. Esse é outro prejuízo e a gente fica perguntando para SEJUDH.

O correto seria: “olha, eu não tenho vaga, mas vou encaminhar esse mandado para outro lugar” e, na medida em que forem surgindo vagas, vamos cumprindo-os. Mas hoje, pra quem a gente manda? Para ninguém.

Então, na prática, se chego aqui e fica constatado que não há vaga para me receber...

Tá liberado. Porque o procedimento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é o seguinte: o jovem é apreendido em flagrante na Delegacia Especializada de Atendimento ao Adolescente Infrator (DEA) e lá pode ficar por no máximo cinco dias. Ao longo desses dias, se não for caso grave ele é liberado para família, se for caso grave esse adolescente ele é encaminhado ao Ministério Público Estadual (MPE) para uma oitiva informal. O órgão pode entender, diante das circunstâncias do caso, que a solução é liberá-lo para família. Se não, o MPE pode representar na justiça pela prática do ato, pedindo a internação provisória. Então a gente (justiça) decreta a internação provisória.

Por exemplo? 

Por exemplo o menino que atirou no agente sócio educativo: não tinha vaga para receber ele naquele dia, foi num sábado pra domingo. Que aconteceu? Por conta da greve no sistema, e uma das recomendações da greve é que não ia trazer os adolescentes nem para o judiciário, nem levar para o MPE, e os prazos foram se estourando e aí não terei tempo de encerrar o processo e liberei três por excesso de prazo e apareceu uma vaga para esse rapaz.

Mas se o sistema não estivesse em greve provavelmente eu não estaria soltando. Pois temos 45 dias para encerrar o processo de adolescente que estão internados no provisório e apareceu a vaga por conta disso. Por isso, estão surgindo vagas no temporário por conta da greve, mas a crise é a mesma e se não houvesse greve eu já estaria com problemas de vaga no provisório também. 
* Fachada do Centro Sócio Educativo do Pomeri, Cuiabá. Foto: Paulo Victor Fanaia Teixeira

Então, a partir do momento que não há vagas e eu sou liberado, existe algum acompanhamento de qualquer natureza?

O Estado tem no sistema sócio educativo duas coisas que administra: O sistema fechado, quer dizer, se não está lá dentro não está sob responsabilidade dele, e deveria ter o sistema de semi-liberdade. Aí sim. Mas o que acontece? Não temos semi-liberdade em Cuiabá e esses adolescentes vão para rua. Ora, a semi-liberdade me desafogaria da internação.

Tem juiz com caso aqui de jovem que já poderia ser levado para semi-liberdade. O que quero dizer com isso? Ter uma qualificação profissional durante o dia, uma possibilidade de reinserção ao mercado de trabalho e dormir na casa de semi-liberdade. Em Mato Grosso não temos isso, e é uma responsabilidade do Estado. Se não me engano, Mato Grosso é o único Estado do Brasil que não tem semi-liberdade, em nenhuma cidade.

A unidade para semi-liberdade que havia no passado hoje abriga internas femininas. A população feminina de internas começou a crescer e a única unidade de internação feminina em Mato Grosso é aqui em Cuiabá. Então, os juízes das demais cidades vão solicitando vaga e a gente vai autorizando. Hoje acho que já estamos com a capacidade máxima de lotação.

[...]

Nós já vamos para mais de um ano e não há, segundo me informa a SEJUDH, previsão orçamentária para locar uma casa para fazer unidade de semi-liberdade. Então precisamos repensar o sistema sócio educativo.

[...]

O espírito da semi-liberdade é outro. É de trazer esse adolescente para um meio aberto e oferecer qualificação profissional. Ora, nós temos órgãos estaduais com uma rede profissional muito grande como, por exemplo, a Secretária de Estado de Trabalho e Assistência Social (SETAS) e o Sistema Nacional de Emprego (Sine). O município também tem seus programas. Mas eu não tenho esse instrumento. Por isso, eu sempre falo: antes da gente discutir qualquer coisa do sistema sócio educativo vamos dar oportunidade. Tratar a causa e não o sintoma.

[A entrevita continua. A Parte 2 se encontra disponível neste link]
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